Caminhar o silêncio
Gosto de caminhar distâncias longas. O ritmo lento permite-me observar os pormenores das paisagens que atravesso. A lentidão oferece-me estar realmente presente com todos os meus sentidos, algo que no meu quotidiano, bem mais rápido, tenho dificuldade em viver.
As caminhadas também me dão o silêncio do vento, dos animais e dos milhares passos que dou. O caminhar muda algumas coisas em mim que são sempre bem vindas.
Assistia há uns dias a um documentário sobre a Natureza e dei por mim desconfortável. Percebi que esse meu incómodo devia-se à música de fundo e voz que acompanhavam as imagens. Fiquei a pensar em qual será a razão para que o silêncio natural, aparentemente, não seja suportável pelo espetador. E, a seguir, no porquê das imagens não serem suficientes para que o programa fosse considerado satisfatório por quem o fez.
Como gosto também de correr, foi impossível não ligar a corrida à minha experiência de caminhar.
Corro sem auscultadores e conheço gente que é incapaz de fazê-lo sem música. Eu prefiro o quase silêncio das passadas, da respiração e do que me rodeia. Um gaio-azul canta numa árvore na mata e eu posso ouvi-lo. O ruído da água no ribeiro a acompanhar o meu trajeto. As cigarras no verão. As rãs ao final da tarde. Os passos de outro corredor, ou o ruído das rodas de uma bicicleta nas minhas costas, indicam-me aproximações e contactos fugazes. Penso com mais clareza e de um modo mais criativo. Falo com Deus.
Tenho pensado no valor da peregrinação, essa disciplina espiritual quase abandonada. Uma semana a andar, em vez do par de dias habitual, em direção a um local dedicado a Deus e ao Seu silêncio que explica a vida, vai-se impondo em mim, devagarinho, como só acontece quando se caminha.