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Small Church

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Os Lugares da Redenção

Só gostava de ter cinquenta paus por cada vez que estive naquela carpintaria e os agiotas teriam na minha conta boa maquia! Não precisava de uma cozinha por medida nem nada feito em madeira. Mas cruzava toda a capital, de Norte a Sul e depois para o Oriente, para cobrar a renda do carpinteiro para o patrão.

Porém, a loja sueca vizinha, de olhos de falcão postos na guita, não teve nem alguma vez terá misericórdia de artesãos de pequenos armazéns e suas despesas. Então, primeiro foi-se o moço brasileiro, de sonhos adiados, deixando o patrãozinho à sua mercê de renda magra. E daí ao incumprimento, ao casamento falhado, ao filho ausente, à mioleira feita serradura, foi um passo.

Primeiro a clemência do senhorio. Depois, a inquietação do próprio homem, a braços com uma fuga para a frente. Talvez Angola. Talvez ainda mais longe do centro de Lisboa. E acabou por ir à sua sorte, de ânimo em papas, apesar das preces.

O pequeno armazém, de bairro mal parido de cimentos, esgotos e vizinhança, ficou-se para sons de aviões levantando, estores fechados à chave e trevas de escuridão. Foi o tempo e o reino das traças e das aranhas, numa horripilante montanha-russa ecológica de comer e ser comido sem luz. Foi assim durante anos.

 

Mas tudo o que é mau também tem um fim. E chegou o tempo da Luz entrar por todos os lados. Como se não houvesse outra opção. Como um edital infalível, uma declaração de obrigatoriedade determinada por Deus para com os seus filhos. E ela chegou, por entre os poros dos estores que se abrem e das rachas das paredes, do Sol radiante a bater nas calhas, reflectidas do cimo da rua.

A porta mudou de sítio, assim como as janelas, que passaram a ter por estratégia deixar entrar a esperança e fazer murchar os bolores. As teias foram demolidas e os orifícios das traças procuraram outros poleiros. As paredes foram reparadas, os caixilhos reformulados. O armazém afarruscado transformou-se em casa.

 

Naquele buraco, aliás, outrora buraco, o novo inquilino, a partir do mesmo sítio, sem ter nada a ver com o passado, voltou a fazer móveis por medida e comentou ciberdicas para mostrar na internet. Como serrar, limar, colar e aparafusar. Que placas comprar. Fez filmes que partilhou com milhões de pessoas de diversas línguas, cores, credos, de todo o planeta. Sim, milhões, digo bem, milhões. Dessa mesma latitude e longitude exactas, noutros tempos com pedaços de contra-placado até aos tornozelos e preocupações bancárias até aos joelhos, saíram milhares de terabytes e significativo conhecimento cibernético. Muitos aprenderam coisas. Muitos terão mudado o curso das suas vidas por causa daquilo que aprenderam.

O tempo foi andando. Com a evolução das ferrugens das juntas de ossos e cartilagens nasceram os sentimentos fundamentais às filosofias que importam desvendar. Quem somos. De onde vimos. Para onde vamos. E também as dores da alma. Amontoaram-se as histórias, baralharam-se os seus meios e os seus fins. E principalmente os seus princípios.

Um génio raro como a vida. Para que tudo corresse bem, o novo inquilino inventou texturas nos sons e junta palavras que ainda ninguém se lembrou de juntar. Pelo menos não pela ordem em que as deixa. Tudo para que possa uivar à Lua e deixar claro que a dor dói. E por isso tudo há-de mudar.

 

De modo que aquele não é mais o mesmo local. O chão voltou a ser sagrado, santificado, mitológico. Redenção. A mãe voltará a amamentar a cria. A ilusão voltará a fazer as crianças sorrir. As flechas voarão bem alto.

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