Por causa da insensatez da velha história que é levar o cão a passear na rua para oberar à porta dos outros, ouvi a inqualificável frase: "Haviam era de matar o cão e enterrá-lo à porta do dono."
Ora, visto que os donos são os responsáveis pelos seus animais, este pensamento é de uma grande injustiça, cruel, indigno de uma sociedade humanista, e até revela princípios de ordem moral desorientados.
Para sermos justos, humanos e consequentes, haviamos era de considerar matar o dono e enterrá-lo à porta da casota do cão.
Com o final da Guerra Fria deixou de existir uma luta que fosse agregadora de grandes multidões transnacionais. A população ocidental deu por si a ressacar de uma constante ameaça de uma guerra nuclear. Antes da ameaça de uma III Guerra Mundial existia a religião cristã dentro da cabeça da maioria das pessoas. Há dois mil anos que a Igreja carregava o facho do Apocalipse e se encarregava de transmitir a convicção de que a degeneração geracional em curso (fosse qual fosse o ano em que se estivesse) era o sinal principal da chegada breve do Anticristo. Mas agora, em 1989, se já não havia religião a que voltar, continuava a ser necessário encontrar algo em que concentrar a moralidade apocalíptica, certamente manca, porque sem uma noção divina e metafisica, mas ainda assim urgente para o sentido de propósito das pessoas. Estas estavam habituadas à vertigem de lutar contra o fim e precisavam de algo novo. Folheio o jornal. Confirmo que o assunto parece estar por todo o lado. Os governos coletam mais dinheiro, as empresas exploram a publicidade virtuosa e a necessidade moral de combater o Mal e estar do lado do Bem pode ser definida e endereçada. Sempre se conseguiu substituir a ameaça nuclear. Já existe um novo Apocalipse a ser usado por todos os viciados na infelicidade. A ideia é simples e, portanto, elegante. Resume-se a isto: o dióxido de carbono que a civilização produz é responsável pelas alterações climáticas que irão matar a prazo milhões de pessoas e destruir muitas espécies da fauna e flora. De alguma forma espantosa, a ideia simples foi adotada sem reservas e tornou-se um facto sem possibilidade de discussão. É um dogma. Mas e se a teoria não estiver correta? E se as temperaturas deixarem de subir o tão pouco que têm subido ou começarem mesmo a descer? Imagino o dia a seguir à saída do relatório da ONU a dar conta de que não se baixaram as emissões e a temperatura há dez anos que está a descer. Imagino indignação e motins por todo o planeta. Afinal, os sacrifícios tinham sido todos em vão. Depois o Zé diz-me que não seria assim. Ele acha que a noticia seria dada nesse dia e que no a seguir já ninguém falaria sobre o assunto. Acabo por concordar com ele e fico a imaginar qual o Apocalipse seguinte que nos iriam vender e esbarro na Inteligência Artificial e no papel semidivino que se preparam para lhe atribuir na resolução dos problemas, injustiças e desigualdades. E então é a minha vez: dou por mim a pensar no número 666 e tudo. Finalmente, um Apocalipse capaz de me encher as medidas.
Peça jornalística muito interessante, sobre um povo e país «esquecido» por todos. O Afeganistão. Os depoimentos são por vezes duros ou crus. Mas a conjugação dos testemunhos e histórias com as imagens leva-nos à tradição humana primordial: compreender os outros e o mundo, ouvindo (lendo).
Estranho o silêncio. Vou ver se está tudo bem. A de 9 anos está deitada no chão a ler o “Toda a Mafalda”. Não digo nada e ela não dá por mim. Vou à procura da de 5, que está a desenhar na sua mesa.
Passam-se talvez 20 minutos e a mais nova aparece a pedir comida. Lembro-me da outra e dou com ela na mesma posição e a ler o mesmo livro. Pergunto-lhe se está a gostar e se percebe o humor. Ela responde que mais ou menos.
Já na cozinha, dou por mim satisfeito por o gosto pelo trabalho de Quino estar a ser passado para a nova geração Leal. Depois caio em mim e um arrepio percorre-me a espinha. De certeza que não preciso que a Mafalda, a contestaria, seja um exemplo para esta criança que ainda na semana passada, arregimentando a irmã, organizou cá em casa uma greve com cartazes, piquete, caderno de reivindicações e negociação com a entidade patronal de modo a ser viabilizada a construção de um forte no seu quarto com todas cadeiras da casa, cobertores, mantas, sacos cama e almofadas onde pretendiam dormir durante o resto da semana.
Suspeito que, pelo sim, pelo não, a passagem de testemunho será interrompida. Talvez o livro vá desaparecer durante uns anos. Evitar mandar Mafalada para cima daquela fogueira chamada Clara é do mais elementar bom senso.
Uma coisa que se esperava do Web Summit, era que trouxesse - de novo - a discussão sobre robots: Afinal, as máquinas devem ter direitos, ou não?
É claro que tenho a minha opinião. Mas isso não vem ao caso. Bimbys e aspiradores uni-vos!
Entretanto, aviso já que, se a Sofia pode passar a ter cartão de cidadão e descontos nas entradas nos museus, a minha máquina de fazer pão também não é de desdenhar de ter direitos: Além de não ter cor política, alimenta a malta cá em casa e é bem mais bonita.
Ó sim, apesar de não ter polegares oponíveis, ou discernimento possível para ir ao multibanco gerir a sua conta, mas visto o meu robot de cozinha ser eficiente na sua função, se isto der aso a subsídios, candidato-me já a ser eu o seu legal gestor.
Ontem à noite, no jornal da noite da RTP2, uma peça digna da televisão estatal (não há outra) da Coreia do Norte.
O início.
Começo incisivo. Sobre as habituais imagens de glaciares a desmoronarem no mar, inundações, lixo espalhado, um golfinho com um saco de plástico na boca (desta vez esqueceram-se do urso polar), a terra gretada com uma poça de água no meio, sobre estas imagens cliché a voz off começa, perentória: “Não é apenas mais um alerta para o que todos já sabem mas muitos teimam ignorar”. Está dado o mote. Se “11000 cientistas, entre os quais 220 portugueses, alertam para o estado de emergência climática” então não é preciso analisar o conteúdo, o que é preciso é passar a mensagem.
Entra em cena apresentadora. Acrescenta mais algumas palavras corroborando a voz off e passa à entrevista. O entrevistado, um dos tais 220 cientistas portugueses, é engenheiro no Politécnico de Coimbra. Engenheiro? Esperem: então os engenheiros também são cientistas? E os formados em História, em Sociologia, em Medicina, em Economia, em Silvicultura, em Fisioterapia também podem assinar o documento e ser considerados cientistas habilitados a pronunciarem-se sobre o clima? Bom, então se for assim “11000 cientistas” vale tanto como “11000 funcionários públicos” ou “11000 bombeiros”. Todos têm direito à opinião. A não ser que a palavra “cientista” esteja ali apenas como uma espécie de sinete papal, um aviso/anúncio que o assunto é para aceitar tal como é apresentado, não é para ser discutido. Talvez seja também por isso que não há contraditório.
O conteúdo.
O entrevistado fala das consequências das alterações climáticas (parece que o que fizermos agora para minorar o problema só vai ter efeitos práticos a partir do próximo século) e resume em dois pontos as ações globais para não agravar a situação: o regresso à frugalidade e a desaceleração vigorosa (zero, se possível) no crescimento demográfico. Aprecio-lhe a frontalidade e a capacidade de síntese mas fico a pensar no irrealismo de tais metas à luz da natureza humana. A apresentadora, escrupulosa com a cartilha oficial, ainda vai buscar Trump e o Acordo de Paris, mas o entrevistado não lhe dá grande saída.
A conclusão.
A apresentadora quer saber se há consenso na comunidade científica sobre as causas das alterações climáticas. O entrevistado responde que 98% concorda que as causas são antropogénicas. No entanto, há uma minoria, os tais 2%, ou menos, que, assumindo as alterações climáticas, considera que o motivo não é a atividade humana. Termina alertando para as teorias da conspiração que parte dessa minoria promove, insinuando interesses obscuros por detrás de iniciativas com a presente. “Os seus argumentos seguramente desmontaram essas teorias”, responde, solícita, a apresentadora, fechando com chave de ouro uma peça de “jornalismo” que Kim Jong-un não desdenharia.
De volta à escrita, vou reunindo o material necessário.
Tento aprender um pouco mais sobre as Leis da Termodinâmica e se a hipótese do Multiverso, com a ideia de que a gravidade se escapa entre universos, passará o crivo da credibilidade. Ao mesmo tempo mergulho no Zoroastrismo, nesse contexto fascinante de Ahura Mazda, e na influência das religiões pagãs dos proto cananeus na construção do judaísmo.
Gigantes, deuses, universos paralelos e as consequências da Inteligência Artificial ganhar auto-domínio: duvido que esteja ao meu alcance uma melhor forma de ocupar o inverno que se aproxima.
Por vezes acontece dizer uma coisa e ter a noção de que nunca mais a direi com propriedade. Como no email enviado esta tarde em que escrevi a um dos irmãos "Mantém-se. Não vou à Argentina."
Parece-me linha de diálogo de agente secreto, um dos meus sonhos de carreira aos 13 anos. Ao menos isso, já que esta oportunidade perdida de, com os meus 3 irmãos, visitar a terra da minha avó, só muito dificilmente se colocará de novo.