Pavilhão cheio. Quase duzentos metros de corredor avenida com tasquinhas dos dois lados. Barulho, fumo, cheiro a comida. Uma banda percorre o corredor garantindo que a animação só suba, não desça. Saxofones, trompetes, trombones, clarinetes, uma tuba e uma minibateria ambulante. Quando chegam junto à mesa onde janto arrancam com “When the saints go marching in” de Louis Armstrong. As pessoas batem palmas, algumas ficam de pé, outras agitam-se ao ritmo da música.
Oh, when the saints go marching in
Oh, when the saints go marching in
Oh Lord I want to be in that number
When the saints go marching in.
O original é um espiritual negro do início do século XX. Conheço o refrão de cor e compreendo-o. Mentalmente vou cantarolando enquanto á minha volta a festa se faz com a música. Sim, eu também quero estar, e estou certo que estarei, no número dos que marcharão e entrarão. E sei que quando isso acontecer a festa será realmente grande. Enquanto a banda toca eu vou celebrando em duplicado. Vivo a festa provisória, com a música, o convívio e a comida, e antecipo a festa eterna, por certo diferente mas plena em todos os sentidos. Um bónus inesperado num lugar improvável. A jornada tem destas coisas.
A primeira memória é da casa de um rapaz chamado Jónatas, com o Miguel. A imagem de um Ferrari a fazer a curva de entrada na reta da meta no Mónaco em 1981
A Formula 1 é um ramo da infância que se aguentou. Os muitos momentos inesquecíveis no Estoril e corridas assistidas na televisão estão marcados por um sentimento literalmente familiar, isto é, gostar de formula 1 é mediado pelo amor que tenho aos meus irmãos, com quem assistia às corridas e partilhava o entusiasmo.
Ontem aconteceu uma grande corrida. Diria, já a caminho dos 50 anos de idade, que me posso permitir dizer que foi à antiga.
Uma das particularidades do que se passou ontem na Alemanha foi a catástrofe que assolou a prova da equipa da casa, a Mercedes. Uma tempestade apocalíptica de azares e inabilidades abateu-se sobre os sempre metódicos, competentes, organizados e competitivos membros da equipa que comemorava 125 anos de participação em desporto automóvel e da marca que patrocinava e dava nome ao Grande Prémio. Entre pilotos, estrategas e mecânicos, todos tiveram oportunidade de fazer asneira.
No fim, telefonei ao Zé, que sabia ter visto em sua casa a corrida e falámos desta com o entusiasmo dos anos 80 e 90, como se estivéssemos no sofá da sala dos pais, com o Miguel e o Pedro.
Músico alemão. A cadência e o tom melancólico de “On the Nature of Daylight” são a vontade de quem se obriga a colocar todas as cartas na mesa com a certeza de que a dor sentida durante o processo será menor do que a felicidade de uma conclusão.
Como poderemos levar uma vida normal perante a incerteza da permanência de Bruno Fernandes no Sporting?
Felizmente, vão acontecendo coisas neste mundo que contrabalançam dúvidas insuportáveis como esta e nos trazem, senão esperança (algo quase proibido nos tempos atuais), pelo menos alguma alegria, como se pode considerar ter acontecido comigo com a primeira fotografia do entrelaçamento quântico.
O entrelaçamento quântico é conhecido há muitos anos e é importante porque desautoriza as leis da física tradicional, o que chateava muito o Einstein ao eliminar a necessidade de Espaço nas equações. Duas partículas entrelaçadas, isto é, que tiveram origem numa mesma partícula (pensemos em um fotão dividido em dois através de um prisma) reagirão ao que acontecer fisicamente um ao outro independentemente da distância. Como em, por exemplo, se eu der um pontapé num dos joelhos de um dos fotões que ficou aqui em Belas e ele responder com um franzir de olho ameaçador, o outro, que entretanto viajou coercivamente para uma localidade dos arredores de Joanesburgo, vai ter a mesma reação de franzir o olho de um modo ameaçador no mesmo momento exato. Como para a Física tradicional não há nada mais rápido que a velocidade da Luz, e esta reação é instantânea, percebe-se a irritação do bom velho Albert.
As implicações do entrelaçamento quântico são várias e podem ser importantes a muitos níveis, sendo que a mais relevante para alguns dos leitores deste blogue talvez seja a de que o materialismo científico, nascido com o Iluminismo, está em cada vez piores lençóis e a perder adeptos para uma física quântica que parece apontar para a evidência de uma mente primordial criadora da realidade (digamos assim para simplificar e esticando um bom bocado as coisas).
Músico norte-americano. O poeta da desolação do mundo converte-se ao cristianismo e, em 1980, apaixonado por Deus, canta “I’m only living by the saving Grace that is over me”
Quase 1 ano e meio sem escrever, sem um projeto, seguindo a regra pessoal, talvez a única, de a escrita vir sempre depois da vida e das suas responsabilidades.
Agora que o espaço para a minha atividade preferida já não atrapalha nada nem ninguém, inicio com gosto a velha e boa rotina das 5 da manhã, sentando-me em frente ao teclado, às vezes escrevendo, outras esperando, sempre com a ideia de que durante o primeiro mês o mais importante é a disciplina, o estar ali aquela hora, o estar sentado, o ensinar de novo o corpo a sentir-se confortável.
Sem qualquer plano para uma história, retiro prazer desses momentos em que passeio entre as minhas ideias, observando-as sem lhes tocar. Algumas são antigas, outras da semana passadas e exibem, ambos os tipos, magnetismos surpreendentes, atraindo-se ou repelindo-se. São átomos que se procuram aliar, querendo ser moléculas, desejando fazer parte da nova história que me irá ocupar durante, quem sabe, vários anos.
Não há pressão e avalio o que sinto acerca do que me dará mais prazer escrever. Considero também molhos de folhas antigas e pacientes de outras histórias que não chegaram a avançar para além das 50 páginas, quase subjugado por uma sensação de dívida para com elas pela sua paciência e pelo abandono a que as votei.
Enfim, tudo em aberto e com todo o tempo do mundo. Durante 2 horas em cada manhã estou no meu parque de diversões, no meu ginásio.
Não consigo admirar a personalidade de Donald Trump porque o homem é mentiroso, belicoso, adúltero e trapaceiro. Não me orgulho disto, mas o homem causa-me até um pouco de repugnância. Não faço ideia o que será não gostar de Trump e tê-lo como presidente do país. Talvez ainda assim achasse bom o seu trabalho, talvez achasse mau. o que é certo é que daqui de Portugal não dá para perceber. Por isso, resta-me observar à distância com o cuidado de não ler notícias sobre o assunto feitas na nossa imprensa.
É com alguma resistência que dou por mim a admirar a suprema inteligência de Trump na administração dos media. O homem, quando precisa, clica no botão e sabe que as CNN deste mundo e todas os outros seus inimigos (quase) proclamados serão incapazes de não reagir e de não fazer aquilo que ele precisa exatamente que eles façam para que o seu objetivo de ser reeleito em 2020 vingue.
Como no mais recente exemplo: os Democratas estão à rasca porque se estão a ver divididos entre uma fação mais progressista e outra mais comedida. As sondagens indicaram que o eleitorado mais indeciso detestava a fação progressista, o que é chato para as eleições do próximo ano, e os mais comedidos, através de Nance Pelosi, iniciaram uma campanha de separação que visava referir os progressistas como irrelevantes bolhas do Twitter. Trump preocupa-se e faz isto, obrigando os Democratas a unirem-se de novo aos olhos do Povão. Ao mesmo tempo que isto acontece, manda cá para fora uma nova lei acerca do asilo que causaria, em condições normais, um terramoto mas que acabou por nem uma folha abanar.
Dá ideia que Trump é um tipo que não é genial nem brilhante em nada de particular, mas tem uma série de características com valores acima da média que, todas juntas, resultam num animal político de outro mundo. Custa-me um bocado dizer isto, porque o personagem não me agrada, mas é incrível de se ver.
O Diário de Notícias online publica uma notícia com o título “Rihanna posa para revista chinesa e levanta questões de apropriação cultural”. Os leitores clicam e a Google, notando que os leitores estão a clicar, atribui anúncios de publicidade paga por terceiros ao artigo. O DN e a Google ganham dinheiro com a notícia acerca de Rhianna. E no que consiste a notícia? Que alguns utilizadores anónimos da web (Quantos? Quem? Não se sabe) acharam que a artista não se devia vestir como asiática porque não o é. Melhor ainda: esta notícia do DN foi criada a partir (quase copy/paste) de uma igualzinha que tinha sido publicada pela CNN há dois dias. É por estas e por outras (muitas e muitas outras, como por exemplo as dezenas de horas grátis dadas aos políticos e aos seus jantares e comícios de verão no que deveria ser um verdadeiro escândalo) que me custa ouvir ou ler jornalistas a choramingar e a quererem convencer o pessoal que são os guardiões da democracia.
Tem gosto em ferir? Que coisa tão machista, Clara. Devia tentar compreender para poder ajudar. Visto que ninguém é perfeito, cada um devia ter gosto, quando muito, em ferir a si próprio em primeiro lugar. Infelizmente para o nosso ego, o dos outros é sempre mais fácil.
O engraçado é que da primeira vez li "Clara: Não tenho gosto em ferir o ego se esse ego é machista." E pensei: "Talvez seja uma entrevista construtiva."
A primeira parte via-a em casa. Numa quase indiferença. Não queria alimentar grandes esperanças para não colher outra monumental desilusão, como em 2004. Além disso, a França era notoriamente melhor e nós íamos apenas fazendo pela vida, ganhando rés-vés e sem brilho. Tinhamos chegado à final, já não era nada mau.
A segunda parte as filhas puxaram-me para o écran gigante no parque. Tentei manter a atitude objetiva mas a multidão e o avançar dos minutos foram mais fortes. O prolongamento estava à porta. E se... Só mais um esforço e um pouco de sorte e chegávamos aos penaltis e então tudo, mas mesmo tudo, era possível. A bola bate na barra da nossa baliza no ultimo suspiro do tempo regulamentar. Sim, definitivamente era o dia em que podia acontecer.
E é então que um jogador improvável (eu ri-me quando ele entrou) com um remate mediano (boa direção mas pouca força) bate um guarda-redes mal posicionado e eu sprinto, salto, grito "golo" pelo parque fora (não sou eu aos quarenta e nove, concluo quando recupero parcialmente a objetividade, sou eu aos quinze a celebrar pelo corredor de casa).
Volto ao meu lugar. Nada está ganho, falta ainda um quarto de hora. O tempo arrasta-se, "aguentem, por favor, aguentem". Depois "Apita! Apita!" E volto a arrancar em novo sprint, aos saltos e aos gritos. Somos campeões europeus!
No regresso a casa, depois da festa, tento explicar às minhas filhas a importância deste título. Falo-lhes dos europeus e dos mundiais em que tínhamos que torcer por outro país porque Portugal não estava lá, da pequenez que se comprazia com as "vitórias morais", dos sonhos que esbarravam no fatalismo. Agora tinhamos ido até ao fim e tinhamos ganho o campeonato da Europa. Percebiam elas a importância do momento? A minha análise pareceu não as ter impressionado. Percebiam bem a festa e, provavelmente, isso era o mais importante.
Trinta e nove anos depois volto ao Agroal. Trinta e nove anos depois volto a mergulhar nas águas transparentes e frias do Agroal.
A água, e a sua temperatura, talvez seja a única coisa que encontro igual. Tudo o resto mudou. As pessoas, o civismo, o cuidado do espaço público, o conforto do espaço público, a uniformização cidade/campo, as vias de comunicação. Tudo muito diferente. Só mesmo a água e a geografia do terreno permanecem. O Portugal de 1980 tornou-se irreconhecível depois de quase duas gerações de Europa e Democracia. Resta saber se esse Portugal desapareceu definitivamente ou está apenas escondido à espera de uma oportunidade.
Nesse julho de 1980 estávamos de férias no Agroal e o pai precisou de pôr uma carta no correio. Não tínhamos carro, não havia autocarro, o táxi era muito caro, solução: ir aos Correios a Tomar, a pé, comprar o selo e enviar a carta. O pai anunciou a sua intenção e eu e o Miguel, não me lembro por que razão, andar a pé não estava, de todo, entre as nossas preferências, oferecemo-nos para o acompanhar. Foi a minha primeira caminhada a sério, tinha eu treze anos, sair de manhã e chegar à tarde, seguramente acima dos vinte e cinco quilómetros.
Guardei várias memórias desse dia e umas das principais fez-se presente agora, no regresso, quando percorri a curva que inicia a descida para ao Agroal. No dia da caminhada essa curva foi feita a pé. Estávamos de volta, desgastados pelos quilómetros e pelo calor, e tudo o que eu queria era chegar ao quarto, estender-me na cama e descansar. Mas esse momento parecia inalcançável, andava, andava e nunca mais chegava. Até que nessa tal curva surgiu, lá em baixo, o Agroal e um sentimento de alívio e alegria tomou conta de mim. Estava feita a caminhada. A minha primeira. Era só descer e descansar. O tempo encarregar-se-ia de preservar as melhores memórias.
Quando comparado com os outros meses de junho, o que passou foi o 4º com temperaturas médias mais baixas em Portugal desde 1931 e o com temperaturas médias mais baixas deste século. No cômputo geral, foi o 13º mais frio desde que há medições.
Just sayin'
Nota 6 julho: "Provavelmente", mas foi mesmo notícia. Pelo menos na edição de 4 de julho no Jornal de Notícias acompanhado no título da informação de que junho foi o mais quente a nível global desde que há medições.